“O UNIVERSO, O VERSO E O METAVERSO”
Este artigo de Alexandre Sayad para a revista Educação aborda a agilidade que as escolas precisam para acompanhar o tempo em que vivemos.
Onde há neologismo, há fogo.
Ao mesmo tempo que países da América Latina e Caribe ainda articulam por internet de banda larga em escolas e comunidades e tentam avançar nos índices de proficiência de leitura de seus estudantes, é no calor algorítmico do Vale do Silício, Califórnia, EUA, que um novo patamar de linguagem e tecnologia se desenvolve a passos largos. Enquanto isso, no forno dos dicionários, os mesmos que vão servir como fonte àqueles estudantes, o neologismo “metaverso” é forjado com esmero.
Dentro do ciclo arte-vida, o termo surgiu pela primeira vez em 1992 no romance “cyberpunk” chamado SnowCras”, do norte-americano Neal Stephenson. Para compreender o que o metaverso significa, temos que subverter nosso próprio entendimento sobre o que é real e do que e como é composta a realidade.
Transformar a realidade
A palavra “verso”, segundo o dicionário Etimológico da Universidade de Oxford, vem de “verter” (transformar) a realidade em uma nova dimensão; no caso, a metáfora, dentro de um cântico. Tem origem latina, mas a raiz foi rapidamente incorporada ao tronco anglo-saxão. Se o verso lança novos mundos na dura realidade, lapidados por nossa capacidade de criar analogias, o metaverso é seu reverso: vem trazer o que está para além dessa realidade, e de nossa metáfora. Brinca com o conceito de universo; pretensamente deseja ser um contraponto.
O metaverso é uma possibilidade, imersiva e combinada, dos mundos material e virtual. Um universo colaborativo (com camadas de tecnologias) em que interagimos com outras pessoas por meio das ferramentas de realidades aumentada e virtual seja em games, redes sociais ou outros programas e sites.
Esse mundo não é um exercício de futurismo. Ele já existe, ao mesmo tempo que não para de se aperfeiçoar e ser retocado conceitualmente. Os estudantes já fazem parte dele em jogos imersivos populares como o Roblox, o Minecraft, ou mesmo o Fortnite.
O salto comercial ensaiado pelas gigantes “edtechs”, como o que o Facebook apostou recentemente, é conectar todos essemetaversos em um único espaço – uma única nuvem digital – com nome e CNPJ. Existe em curso uma disputa por domínio econômico e político do metaverso; ele já é parte do chamado capitalismo cognitivo.
A principal distopia desse metaespaço é que todas as interações nele ocorridas são registradas e podem ser monitoradas ou rastreadas. Isso porque são, na sua natureza mais íntima, dados. Uma quantidade assombrosa que, mesmo diante da atual, é quase inimaginável e somente poderá ser interpretada com precisão por algoritmos de inteligência artificial.
Mais do que compreendê-lo em profundidade, a educação formal precisa abraçar imediatamente o fenômeno do metaverso à luz do contemporâneo.
Como lidar com isso se há tanta desigualdade e questões urgentes anteriores a essa questão? Justamente quando tentamos delimitar as características da contemporaneidade, esbarramos, sobretudo, na simultaneidade e na impermanência; no caso, a ordem de surgimento de fenômenos como este não respeita a cronologia que esperamos. Não há antes, tampouco depois. Tudo muda o tempo todo, e as escolas precisam criar agilidade para acompanhar o tempo em que vivemos.
Afinal, sob a ótica da linguagem e do pensamento, o metaverso não é uma mera simulação. O pesquisador Rafael Zanatta tem brilhantemente trazido o conceito da semiótica de Charles Peirce para tentar explicar o que vivemos: a construção de uma realidade sob novos signos. Essa construção é permanente – porque a realidade é construída por meio da comunicação, no caso, em espaços híbridos.
Nesse sentido, implicações do metaverso são reais e mais perceptíveis a cada dia. Algumas delas já surgem no escopo de políticas públicas:
• Como esse universo material e digital pode ampliar ou reduzir desigualdades sociais (a começar pelo acesso)?
• Como os valores de uma “cidadania global” podem tornar-se tangíveis no metaverso?
• Até que ponto o caráter colaborativo permite a existência ou manutenção de características culturais locais no metaverso?
• Como se regula a privacidade de dados pessoais, ou seja, de movimentos e interações no metaverso? Quem é dono dessas informações?
• Como se dará a governança do metaverso?
Há, por ora, dois caminhos simples para que o currículo e as práticas escolares se debrucem junto com os estudantes sobre as implicações reais do metaverso.
O primeiro é incorporá-lo ao papel da chamada educação midiática, ou seja, o conjunto de habilidades ligadas à cidadania “para” e “com” as mídias. A partir do uso de games, por exemplo, as atividades de criação de novos mundos podem provocar discussões interessantes sobre o que faz ou não parte do real e quais são os direitos e deveres dos avatares. O Minecraft, de certa maneira, tem sido explorado dessa forma por educadores precursores como Francisco Tupy.
Aliás, desse mesmo escopo de ressignificação da realidade, há outra frutífera possibilidade. Talvez seja na fantasia, ou seja, na construção fictícia de narrativas, que o metaverso mais faça sentido e encontre funções educativas interessantes. Por exemplo, recriar o universo de Machado de Assis, um escritor negro da virada do século 19 para o 20, por meio de um universo virtual, mas verossímil, pode tornar-se uma experiência imersiva inesquecível. Desenvolver habilidades como a empatia se torna mais fácil. O metaverso pode assim se tornar uma extensão em três dimensões das obras de ficção da literatura.
Esse é um caminho semelhante ao que exposições artísticas imersivas vinham seguindo antes da pandemia, como no caso de Vicent Van Gogh. Uma mostra imersiva rodou o mundo, passando pelo Brasil e servindo de porta de entrada para aqueles que conheciam mais superficialmente a obra do pintor holandês.
Alexandre Le Voci Sayad é jornalista e educador, diretor da ZeitGeist e co-chairman da UNESCO MIL Alliance
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